domingo, 2 de janeiro de 2011

O conteúdo da FITA TAPE


Deitado na cama as horas não passam. Lembranças de minha infância fluem vagarosamente, como água em uma vertente.  Era tão lindo cavalgar pelos campos do sítio para recolher as vacas, comer os quitutes que minha mãe preparava. Aqui cavalgo pelos corredores em minha cadeira de rodas, ando vagarosamente até a janela onde espero meus familiares.
Quando tinha nove anos prensei minha mão em um debulhador de milho, era um aparelho manual, movido por manivela. Felizmente não perdi nenhum dedo, mas o anelar e o mindinho ficaram tortos.  Foi curado com banha de porco e mais algumas ervas que não recordo, o ferimento foi fundo.
Mesmo com a mão enfaixada continuei fazer as coisas do meu cotidiano, pois era o filho mais velho e deveria ajudar meu pai na lida. Em um mês a ferida já estava curada, e eu podia trabalhar como antes.
Morei no sitio até meus doze anos depois mudamos para cidade. Minha irmã mais nova tinha problemas de saúde, não podíamos levá-la toda vez de carroça até o médico que ficava a mais de 10 quilômetros. Meu pai acabou por vender o sitio e todos os animais juntos.
Não me adaptei com a mudança.
Durante alguns dias fiquei sem sair de casa, apreciava pela janela cada vez que via um cavalo. Não entendia como as crianças podiam ser felizes naquela cidade de pedra.
Pouco antes de completar treze anos, comecei trabalhar em uma olaria. Carregar barro, empilhar tijolo, esse era o meu dia-dia sem nem pensar em estudar ou dizer para os meus pais que estava cansado.
Enquanto trabalhava podia ver os garotos ricos caminhando com as garotas, subindo e descendo a rua. Eu só pensava, meu destino será traçado por mim.
Com quinze anos eu já freqüentava bailes, logo arrumei inimigos. Eu apesar de pobre gostava um fandango, uma peleia.O mundo estava em guerra. O Nazismo estava sendo derrotado.
Larguei o emprego na olaria para tentar o serviço militar, fui dispensado por ter os dedos tortos, apenas por isso. Já tinha dezoito anos, precisava de dinheiro e o exercito não me queria, com muita insistência dos patrões voltei para a olaria. No ano seguinte voltei a tentar o serviço militar, e mais uma vez fui dispensado. Depois da segunda frustração no exercito resolvi que realmente era o dono do meu destino.
Eu tinha apenas dezenove anos, deixei meus pais na pequena cidade de Sapiranga e fui rumo à capital. Morei como pensionista em uma pousada de Porto Alegre e logo consegui emprego em um armazém, vez ou outra visitava meus pais.
"Calma garoto! Eu tenho que tomar meus remédios, a Enfermeira está chegando!"
Garoto, esta é minha filha, esposa, minha família. Ela e a Juliana, que é a enfermeira do turno da noite, são as pessoas que ainda olham por mim.
“Um tlec onde o tape foi pausado.”
“Um chiado, e a voz recomeça.”
Onde estávamos? Ah sim, eu não vi meus pais envelhecer, estava muito ocupado para isso.
Quando tinha vinte, levei minha namorada para os meus pais conhecer. Minha mãe não aprovou, pois aquela era uma garota da cidade grande. Minha vida era tomada por decisões alheias, aquela era minha. Não ia largar minha amada para agradar meus pais.
Logo quando completei vinte e um, assumi sociedade no Armazém e o tornamos um pequeno mercado. Comprei uma picape Chevrolet  para poder transportar os produtos do atacado para o mercado sem pagar frete.
O tempo passou e a Helga engravidou, tive que lutar muito para juntar dinheiro e poder casar. O pai dela me matava se eu não casasse.
Casei em junho de 1949. Lembro como hoje, a Helga estava linda a barriga apontando no vestido. Muitos nos condenaram por que ela casou grávida, eu nem me importei com opiniões alheias queria ser feliz.
A Helga era linda, cabelos loiros longos e pele clarinha como a neve.
Quando meu filho nasceu, foi o dia mais lindo de minha vida, nem comparado ao casamento. Diferente do meu, o parto do nosso filho foi feito em um hospital. Nasceu um lindo menino, olhos azuis como os da mãe, mas com o cabelo mais escuro como o meu. Seu nome era Antônio.
“Um suspiro forte chiou o alto-falante”
Infelizmente, meu casamento terminou poucos anos depois.  Eu trabalhava duro até tarde da noite, de segunda a segunda. Pensava em comprar a parte do meu sócio no Mercado.
No fim do segundo ano do meu casamento, lá por maio de 1951 me tornei dono do mercado. Comprei a parte do seu Zé avista, sabia que ele queria se aposenta e comprei a parte dele avista.
Eu estava extremamente feliz com a aquisição, a Helga não. Eu já não tinha mais tempo para a família era só trabalho e trabalho. Pensava em dar um bom futuro para o nosso garoto.
Era final de 1952, quando Helga me abandonou dizendo que voltaria para a casa de seus pais, e levaria Antônio com ela. Eu aceitei, com muito sofrimento aceitei.  Não demorou muito para ela achar um novo marido, afinal, mesmo com filho ela era linda.
A minha vida se destroçou, mesmo tendo a casa, o mercado, aparentava que eu não tinha nada. Pagava uma gorda pensão para o nosso filho e vivia sozinho. Boa parte do que ganhava gastava em prostibulos, ou em boates, ou praticando meu maior Hobby, a troca de carro. Fui levando minha vida solitária, e sempre bem acompanhado.
Casei novamente, em 1972. Na verdade não foi um casamento, trouxe uma garota para morar comigo.  Ela era vinte anos mais nova que eu. Isso não importava, ela apenas cuidava da casa, e de mim na cama. E eu cuidava de arrumar nosso sustento. A Lurdez era ótima na cozinha, e melhor na cama, nosso relacionamento durou quase quinze anos.
Triste foi no quarto ano de casamento quando descobri que ela não poderia ter filho, chorei muito. Pois meu primogênito nem se quer me chamava de pai, e agora não poderia ter outro, não com ela. Quando terminei o relacionamento, eu estava com 60 anos, e ela com apenas 40. Acredito que eu não dava mais no couro, não como ela queria. Resolvi eu tomar a iniciativa de terminar, pois vi que ela estava insatisfeita.
Os anos voltaram a passar depressa,  1995 abandonei o mercado. Tentei presentear meu filho dando- lhe de presente, pois era um ótimo ponto. Mas ele disse ter uma boa carreira, que sua mãe soube administrar a pensão, e garantir bons estudos. Disse também que não largaria tudo pela vontade de um velho gaga... Sim garoto, ele me chamou de velho gaga.
Acabei por vender o mercado, com o dinheiro comprei dois apartamentos que coloquei para alugar e ainda sobrou uma graninha. Fui pego desprevenido, pela hipertensão, por reumatismos. Fui parar entrevado em uma cama, pelas doenças.
Durante algum tempo paguei uma mulher para cuidar de mim, mas era ruim pois quase toda semana tinha que ir ao hospital. Lá no hospital uma enfermeira, me perguntou:
- Vozinho, tu não se sentiria melhor em uma cliníca, em um asilo, onde terá a companhia de outros idosos. – A voz se tornou mais doce, tentando parecer feminina.
Demorou mais aceitei a idéia, faz cinco anos que estou aqui. Meu filho me visita só no natal e no meu aniversário. Já sou bisavô, tenho dois netos e quatro bisnetos. Se hoje eu os enxergar, nem reconheço.
Meu  jovem desculpe me emocionar, mais já estou velho. E não tenho ninguém. Felizmente alguns jovens fazem trabalho comunitário e vem nos visitar. Mas como te falei, minha família é a Juliana, e a Tamara, As duas enfermeiras.
“toc toc” batidas na porta.
Garoto você deve sair, O senhor Anselmo deve dormir.
“tlec” O gravador sendo desligado.
Este é o conteúdo de uma fita tape que gravei em 2005 para um trabalho de escola.
Depois daquele dia, visitei o senhor Anselmo mais quatro vezes, três no asilo e uma em seu enterro.  
Resolvi públicar o conteúdo da fita em memória do senhor que me ensinou muito.

5 comentários:

  1. Poxa cara, parabéns! ficou ótima essa história relatada no seu estilo de escrever. Essa história é muito rica de significados e ensinamentos, e vc soube conduzir bem ela no seu estilo.

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  2. Texto perfeito!
    Adorei a nova cara do blog!!!
    Ficou lindo.
    Parabéns!

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  3. Legal! Poderíamos escrever um livro juntos, misturando meu lirísmo ao seu terror categórico! 8D

    http://www.rolecake.blogspot.com

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  4. Nossa, meu deus, ficou uma história perfeita, assim acho pelo seu jeito de escrever. E adoro seu estilo de escrever. Essa história tem enorme significado e ensinamento.
    http://lollyoliver.wordpress.com/

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